O aumento de casos de contaminação de chocolate por Salmonella tem chamado a atenção dos consumidores. Só em 2022 dois casos envolvendo grandes marcas geraram recalls que atingiram mais de 11 países.
De acordo com a Comunidade Européia (EC, 2003) o chocolate está entre os produtos de baixa umidade responsáveis pelos maiores surtos de salmonelose em humanos.
Saiba mais sobre as principais características da Salmonella e os sintomas ocasionados por Salmonelose no post “9 informações básicas que você precisa saber sobre Salmonella”.
Normalmente os casos de contaminação por Salmonella estão associados a produtos frescos, como carne de frango e de gado, ovos, frutas e legumes. No entanto, esse micro-organismo pode ser encontrado em amostras de água, solo, ambiente e alimentos de baixa umidade de água, como sementes, chocolate e farinhas.
Apesar dos relatos recentes, a contaminação de chocolate por Salmonella é preocupação para a indústria de alimentos há bastante tempo. Há relatos científicos que datam de 1977, que alertavam os principais pontos da cadeia produtiva e insumos na produção do chocolate associados à incidência e sobrevivência de Salmonella (D’AOUST, 1977).
Salmonella em chocolate: a culpa é do cacau?
A qualidade do chocolate depende primordialmente da qualidade do cacau, cuja composição físico-química (teor de gordura, proteínas, carboidratos, cor e pH) é frequentemente utilizada como critério de avaliação.
No caso de matérias-primas de países onde não se tem um bom controle higiênico, é necessário o controle microbiológico redobrado a partir de testes bacteriológicos desses insumos.
Além de garantir a qualidade do fornecedor, outras etapas do processamento de cacau podem estar associadas à contaminação por Salmonella.
A torrefação do cacau, por exemplo, é uma importante etapa para o desenvolvimento de sabor e aroma. No caso de chocolates finos, a torrefação excessiva (além de 160°C) pode resultar no desenvolvimento de sabores indesejados e gosto de queimado. Dessa forma, a torrefação deve ser realizada adequadamente para garantir a inativação de contaminantes microbiológicos e a qualidade sensorial do cacau.
Yan & colaboradores (2021) avaliaram a inativação de Salmonella em uma faixa de temperatura de torrefação que pode ser relevante para produtores de chocolates finos. Os autores relataram uma redução de >5 log10 UFC/grão com 10 minutos de torrefação a 150 °C, condição favorável para garantir a saudabilidade e qualidade do grão.
Mas, pensando nas condições ideais de crescimento da Salmonella, que multiplica-se facilmente entre 8 – 11°C e sobrevive na temperatura de 35 – 43°C (com extremos de 5 a 46°C), como ela pode sobreviver a condições tão elevadas como a da torrefação?
Salmonella e sua resistência ao calor
Os micro-organismos em geral estão em constante adaptação, podendo haver mudanças em sua fisiologia e comportamento genético para suportar condições físicas extremas (Aguirre-Sanchez et al., 2021).
A exposição da Salmonella a estresses subletais, como secagem e torrefação, pode levar à sua adaptação e aumentar a resistência ao tratamento térmico (Keller et al., 2012). Durante o armazenamento prolongado, essas células microbianas podem sobreviver no cacau seco, e retomar o metabolismo ativo quando encontram um ambiente favorável.
Morasi & colaboradores (2022) avaliaram os mecanismos de sobrevivência e termorresistência da Salmonella em diferentes alimentos de baixa atividade de água, incluindo chocolate e suas matérias-primas, como mostra a tabela abaixo.
Alimento | Atividade de água | Sorotipo de Salmonella contaminante | Tempo de sobrevivência no alimento |
Chocolate ao leite | 0,41 | S. _ Eastbourne | >9 meses a 20°C |
Chocolate amargo | 0,51 | S. _ Eastbourne | 9 meses a 20°C |
Grãos de amêndoa | – | S. _ Enteritidis | 550 dias a 20,4 e 23°C |
Óleo de manteiga de cacau/casca de cacau triturada/casca de avelã triturada | 0,2 | S. Nápoles , S. Enteritidis , S. Oranienburg , S. Montevidéu , S. Poona , S. Typhimurium LT2 e S. Senftenberg | 21 dias a 5 ou 21°C |
Fonte:Tabela traduzida de Morasi et al., 2022.
Salmonella em chocolate: Casos recentes de contaminação
De acordo com Podolak & Black (2017), a capacidade da Salmonella de sobreviver por longos períodos em alimentos de baixa umidade, pode ser atribuída a outros fatores além do calor, como:
→Falhas no controle de armazenamento dos ingredientes;
→Práticas inadequadas de higienização;
→Operação e sanitização ineficaz dos equipamentos;
→Uso de ingredientes (aditivos, leite em pó, manteiga de cacau, etc) contaminados.
No caso da empresa belga A, as investigações apontaram que a contaminação estava ocorrendo nos tanques de leitelho. A empresa informou que o contaminante foi detectado em operações rotineiras de controle de qualidade, admitindo falhas internas. Essas falhas possivelmente estão ligadas a má higienização, uma vez que o mesmo leitelho foi fornecido a outras fábricas, que não apresentaram contaminação.
Enquanto que a empresa belga B, após investigações, reportou a lecitina como o carreador da Salmonella no chocolate final. A lecitina é um aditivo que deve ser acrescentado tardiamente ao processo, em temperaturas brandas, pois ela retém a umidade final da massa.
A Food Safety Brazil entrevistou Donizeti Cezari, que trabalhou nos últimos 16 anos como gerente corporativo de Qualidade da Nestlé Brasil, a respeito dos casos recentes de Salmonella em chocolate. Donizeti comentou que: “Um dos aspectos que mais interfere no contexto de tomada de decisão de um recall é a rastreabilidade.”
A rastreabilidade do problema avalia todas as etapas da produção e lista os possíveis fatores que podem trazer riscos para a saudabilidade do produto final.
Outros fatores que contribuem com a contaminação do chocolate
Os produtos de cacau não são os únicos ingredientes que podem introduzir Salmonella no chocolate. Como foi apresentado por Morasi et al. (2022), amêndoas, manteiga de cacau e o próprio chocolate (produto final), podem estar contaminados com diferentes sorotipos de Salmonella.
De acordo com Rolfe & Daryaei (2020), fatores intrínsecos (teor de gordura, umidade, pH, ácidos, etc) e extrínsecos (composição química, temperatura, métodos de processamento, características dos sorotipos) podem contribuir para a adaptabilidade dos micro-organismos.
O alto teor de gordura, por exemplo, pode afetar positivamente na sobrevivência de patógenos, uma vez que a gordura protege as células bacterianas contra efeitos do ácido gástrico. Este fato possibilita a colonização do micro-organismo no trato gastrointestinal e, consequentemente, a aparição dos sinais clínicos (Olaimat et al., 2020).
Devido aos diferentes sorotipos de Salmonella que podem contaminar chocolate e os insumos utilizados na sua produção, como realizar a adequada identificação desses micro-organismos?
Salmonella: como identificar?
Comentamos em posts anteriores como a Neoprospecta detecta Salmonella em diferentes matrizes, superfícies e ambientes. Na prática, avaliando os recentes surtos de Salmonella em chocolates, podemos citar algumas soluções para encontrar a causa raiz e até mesmo identificar a sorovariedade contaminante.
As soluções da Neoprospecta geram dados que apoiam a tomada de decisão de segurança alimentar. Além de auxiliar de forma preventiva as contaminações por patógenos, como a Salmonella.
Referências
Aguirre-Sanchez, J. R., Ibarra-Rodriguez, J. R., Vega-Lopez, I. F., Martínez-Urtaza, J., & Chaidez-Quiroz, C. (2021). Genomic signatures of adaptation to natural settings in non-typhoidal Salmonella enterica Serovars Saintpaul, Thompson and Weltevreden. Infection, Genetics and Evolution, 90, 104771. https://doi.org/10.1016/j.meegid.2021.104771
D’AOUST, J. Y.; Salmonella and the Chocolate Industry. A Review. Journal of Food Protection. V. 40. Pg. 718-727, 1977.
Keller, S. E., Grasso, E. M., Halik, L. A., Fleischman, G. J., Chirtel, S. J., and Grove, S. F. (2012). Effect of growth on the thermal resistance and survival of salmonella Tennessee and Oranienburg in peanut butter, measured by a new thin-layer thermal death time device. J. Food Prot. 75, 1125–1130. doi: 10.4315/0362-028X.JFP-11-477
Morasi, R. M.; Rall, V.L.M.; Dantas, S.T.A.; Alonso, V.P.P.; Silva, N.C.C.; Salmonella spp. in low water activity food: Occurrence, survival mechanisms, and thermoresistance. Journal of Food Science. V. 87, Pg.2310–2323, 2022. https://doi.org/10.1111/1750-3841.16152
Olaimat, AN , Osaili, TM , AL-Holy, M. , Al-Nabulsi, AA , Obaid, RS , Alaboudi, AR , Ayyash, M. , & Holley, R. ( 2020 ). Segurança microbiana de produtos alimentícios oleosos e com baixa atividade de água: uma revisão . Food Microbiology , 92 , 103571.https://doi.org/10.1016/j.fm.2020.103571
Rolfe, C. , & Daryaei, H. ( 2020 ). Fatores intrínsecos e extrínsecos que afetam o crescimento microbiano em sistemas alimentares . In: A. Demirci , H. Feng , K. Krishnamurthy (eds) Food Safety Engineering. Engenharia de Alimentos . Cham : Springer.https://doi.org/10.1007/978-3-030-42660-6_1
Yan,R.; Pinto, G.; Taylor-Roseman, R.; Cogan, K.; D’Alesandre, G.; Kovac, J.; Evaluation of the Thermal Inactivation of a Salmonella Serotype Oranienburg Strain During Cocoa Roasting at Conditions Relevant to the Fine Chocolate Industry. Front. Microbiol.,2021. https://doi.org/10.3389/fmicb.2021.576337
Autora
Camila M. M. Ferro
Engenharia de Alimentos e especialista em vigilância sanitária. Atualmente é conteudista da Neoprospecta