Mesmo com a atual exigência da ANVISA de padrões microbiológicos, ainda são recorrentes os casos de surtos de doenças transmitidas por alimentos, comumente chamadas de DTAs. A biologia molecular pode ser uma aliada na detecção rápida e precisa dos patógenos causadores desses surtos.

Os surtos alimentares são caracterizados por um episódio em que duas ou mais pessoas apresentam os mesmos sintomas após ingerir alimentos de mesma origem. Segundo dados da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, estima-se que de 2007 a 2017 ocorreram 7.170 surtos alimentares no Brasil.

Dada a importância de diagnosticar e prevenir a contaminação por microrganismos ou suas toxinas, técnicas de detecção mais recentes vêm se integrando àquelas já utilizadas comumente, como os métodos de microbiologia convencional. Isso porque, atualmente, a biologia molecular possibilita que a identificação de patógenos seja mais rápida, precisa e confiável.

Os métodos tradicionais como pré-enriquecimento, isolamento em meio seletivo e identificação por fenótipo ou por testes bioquímicos, possuem algumas limitações. Essas técnicas demandam grande quantidade de material, trabalho e tempo, além de serem sujeitas a equívocos na interpretação dos resultados.

Assim, métodos como o PCR e seus derivados, além de RFLP, PFGE e alguns outros, são alternativas que oferecem rapidez e precisão na identificação da causa de surtos alimentares.

Vamos conhecer alguns métodos da biologia molecular que ajudam a detectar as causas de um surto alimentar:

 

PCR (Reação de cadeia em polimerase)

A PCR (do inglês – Polymerase Chain Reaction) é uma técnica baseada na amplificação, in vitro, de fragmentos específicos do genoma através de uma reação na qual uma DNA polimerase termoestável age sobre o DNA desnaturado, polimerizando uma nova fita a partir de primers (sequências iniciadoras) específicos para a sequência de interesse. O ciclo de desnaturação do DNA, anelamento dos primers e extensão pela enzima ocorre diversas vezes, permitindo a amplificação exponencial e resultando em várias cópias da sequência nucleotídica. Assim, este método possibilita a detecção de microrganismos específicos mesmo em uma amostra com grande diversidade de sequências.

 

RFLP (Polimorfismo no comprimento do fragmento de restrição)

O RFLP (do inglês – Restriction Fragment Length Polymorphism) é o método pelo qual o DNA é digerido por enzimas de restrição que reconhecem sequências específicas e clivam as duas fitas em pontos determinados. Os fragmentos de DNA de diferentes tamanhos obtidos neste processo são separados em bandas em um gel por eletroforese, e transferidos para uma membrana de nylon ou nitrocelulose por um processo chamado de Southern Blot.

Os fragmentos imobilizados na membrana podem ser vistos por meio da hibridização contra sondas com sequências homólogas. Cada microrganismo pode ser identificado por possuir um padrão de restrição.

 

Sequenciamento de DNA

O primeiro método de sequenciamento de DNA surgiu no início da década de 70 e ficou conhecido como método químico ou método de Maxam-Gilbert. Poucos anos depois, em 1977, Frederick Sanger propôs uma técnica enzimática inovadora, chamada de Sequenciamento de Sanger, que é utilizada até hoje. Utilizando esse método de sequenciamento, a iniciativa mundial do Projeto Genoma Humano sequenciou o nosso genoma em aproximadamente 10 anos.

Na tentativa de encontrar métodos mais rápidos e que pudessem ser usados em maior escala, na década de 90, surgiram as plataformas de nova geração ou NGS (Sequenciamento de Nova Geração). Cada vez mais aprimoradas, as plataformas de NGS trouxeram grandes avanços para análise de dados biológicos (como na detecção das causas de um surto) e exemplos delas são o pirosequenciamento e sequenciamento por síntese.

 

PFGE (Eletroforese em campo pulsado)

Esta técnica consiste em uma modalidade de eletroforese que aplica mais de um campo elétrico direcionado de forma alternada. No PFGE (do inglês – Pulsed Field Gel Electrophoresis) ocorrem mudanças no sentido do campo elétrico de tempos em tempos (tempo de pulso), fazendo com que as moléculas de DNA se reorientem e se posicionem paralelamente ao campo de força, antes de migrar novamente para o pólo positivo.

Fragmentos menores se orientam com mais facilidade, enquanto os maiores demoram mais para seguir o novo sentido do campo elétrico. Assim, esta técnica possibilita a separação de grandes fragmentos de DNA, como de cromossomos inteiros. Na identificação de bactérias causadoras de um surto, o cromossomo bacteriano é digerido com enzimas de restrição e os fragmentos gerados são separados por eletroforese em campo pulsado, permitindo reconhecer um perfil de bandas e discriminar linhagens e partir disso.

 

Técnicas de biologia molecular já ajudaram a combater surtos alimentares?

Segundo o médico nacionalmente reconhecido Drauzio Varella, na maioria dos casos de intoxicação alimentar, a infecção bacteriana é a principal causa. Os agentes da infecção mais frequentes são os diferentes tipos de Salmonella e o Staphilococus aureus, pois são capazes de viver e multiplicar-se no interior dos intestinos.

No artigo “Identificação de um surto de salmonelose por meios de sequenciamento molecular”, os pesquisadores usaram sequenciamento de nova geração (NGS) para rastrear a fonte de um surto causado por Salmonella enterica. O surto, que afetou aproximadamente 300 pessoas em 44 estados diferentes entre 2009 e 2010, teve sua fonte identificada através do sequenciamento.

Em um surto ocorrido em 2013, um grupo de estudos identificou a cepa Cronobacter malonaticus como responsável pela infecção de três neonatos em um Hospital Maternidade em Teresina, Piauí. Além da caracterização fenotípica, os isolados foram tipificados por eletroforese em gel de campo pulsado. 

Além de rastrear fontes de um surto, essas técnicas também podem ser usadas para medir e acompanhar a segurança de alimentos, como demonstrado na revisão “Impacto das técnicas de Sequenciamento de Nova Geração na microbiologia alimentar”. 

 

Por que utilizar biologia molecular é essencial?

“Diagnóstico” é uma palavra criada pelos médicos gregos em meados do século XVII que significa “distinguir” ou “reconhecer”.

Segundo dados prospectados pela ONU, até 2030 a população mundial passará dos 7,6 bilhões de 2017 para 8,6 bilhões de habitantes, um aumento de 1 bilhão em 13 anos. E, junto com esse aumento, surge a crescente necessidade de uma medicina moderna, com diagnósticos precisos e rápidos. Isso inclui reconhecer sintomas, causas e todas possíveis variáveis influenciando um surto.

Aliada às intuições clássicas de diagnóstico fisiológico, a biologia molecular traz uma perspectiva personalizada e, graças às inovadoras ferramentas bioinformáticas, aplicável em larga escala. Seja em análises individuais de pacientes, amostras de insumos, surtos ou intoxicações a nível populacional, ela é fundamental para distinguir, reconhecer e combater contaminações de forma eficiente.

 

Referências

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BRANDÃO, M. L. L.; UMEDA, N. S.; CARVALHO, K. R.; FILIPPIS, I. Investigação de um surto causado por Cronobacter malonaticus em um hospital maternidade em Teresina, Piauí: caracterização e tipificação por eletroforese em gel de campo pulsado. Rev. Visa em Debate, Rio de Janeiro, 3 (3): 91 – 96, 2015.

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