Enterobacteriaceae é um nível taxonômico que engloba espécies de bactérias que são organismos importantes no controle de qualidade de alimentos, como espécies de Salmonella, Shigella, Yersinia, Escherichia, etc. Escherichia coli é uma bactéria com forma de bastonete, é anaeróbica facultativa e gram negativa. Embora seu habitat primário é o trato gastrintestinal de humanos e outros mamíferos endotérmicos (“de sangue quente”), ela também habita o solo, vegetação e outros locais. Por sobreviver de forma comensal, esta bactéria contribui para o bom funcionamento do nosso intestino.
No entanto, alguns subtipos de E. coli são patogênicos, os quais causam infecções intra ou extra intestinais que podem evoluir para sequelas crônicas irreversíveis, inclusive causando a morte de seu hospedeiro. Foi reconhecida como patógeno de origem alimentar somente em 1971, quando queijos importados foram comercializados em 14 estados americanos. Naquela ocasião foram reportados cerca de 400 casos de gastrinterite causado por uma linhagem enteroinvasiva.
No entanto, há evidências de que em 1700 E. coli foi associada a um quadro de diarréia infantil, sendo que antes de 1971 havia o reporte de pelo menos cinco surtos de origem alimentar em outros países, sendo o primeiro em 1947 na Inglaterra. Da mesma forma que outras Enterobacteriaceae, Escherichia podem ser tipificadas por sorologia, o que permite diferenciar subtipos, tais como sorogrupo e sorotipos.
Análises de tipificação de E. coli
Em análises de tipificação são usados anticorpos específicos (anti-soro) que auxiliam na identificação de antígenos presentes nas células bacterianas. Para antígenos solúveis, como toxinas, pode-se aplicar técnicas de difusão em gel. Para outros antígenos, a diferenciação de subtipos de E. coli pode ser realizada com base em métodos de aglutinação, os quais confirmam a presença de algumas estruturas celulares, tais como a presença de antígeno somático O (definição do grupo, lipopolissacarídeo presente na membrana externa), antígeno capsular K e antígeno flagelar H.
Como as proteínas do flagelo são menos heterogênias do que as cadeias laterais de carboidratos que compõem os grupos O, existem menos grupos antígenos H a disposição para análises de aglutinação. O diagnóstico para identificação dos sorotipos de E. coli em pacientes com suspeita de infecção é feito através do exame de fezes, onde o foco pode ser a detecção direta de toxinas ou isolamento e identificação da E. coli por métodos moleculares e bioquímicos.
Sorotipos de E. coli podem ser cultivados em meios seletivos, como o meio de Mac Conkey, o quais selecionam bactérias gram negativas. Isso permite fazer a relação entre o patógeno e a fonte de contamiação, pois se for possível isolar a bactéria a partir do alimento suspeito de causar a contaminação, isso reforça que o quadro de diarréia do paciente se originou após a ingestão do produto contaminado.
Quais os métodos de detecção de sorotipos de E. coli ?
Os métodos de detecção de sorotipos de E. coli são baseados em PCR convencional, Tempo Real dos genes de virulência (antígeno O, K e H), detecção de anticorpos com método de ELISA ou sequenciamento e análise do genoma completo. Tais abordagens permitem a detecção de certos antígenos que auxiliam na diferenciação de sorotipos patogênicos de não patogênicos.
Existem pelo menos 200 sorotipos de E. coli que são reconhecidos até o momento e, de acordo com as síndromes clínicas, fatores de virulência e características sorológicas, podemos classificá-los em cinco patótipos a saber:
- E. coli Enteropatogênica (EPEC) é um sorotipo de importância para os primeiros anos de vida de recém nascidos e lactantes, causando diarréia. Este subtipo não é produtora de enterotoxina e não é invasora. Ocorre em países desenvolvidos e em desenvolvimento, em recém nascidos causa contaminação por contato da criança com a genitália feninina no momento do parto. Em crianças de outras idades, a contaminação se dá quando as mesmas colocam as mãos à boca ou quando ingerem alimentos contaminados. De forma geral, observa-se que existem mais resgistros de contaminação por EHEC em crianças menores de dois anos, sendo que a severidade da infecção se eleva conforme a idade das crianças diminui. O mecanismos de patogenicidade se dá após a adência deste sorotipo ao epitélio intestinal, onde as microvilosidades são eliminadas e, como estas são responsáveis pela absorção da água das fezes, observa-se a ocorrência de diarréia aguosa aguda (até 14 dias). Em uma pequena parcela do total de crianças que são infectadas, observa-se o desenvolvimento de diarréia aguosa persistente. A identificação deste sorotipo pode ser feita de forma polivalente ou monovalente a partir da triagem de antígenos O e K. Como análises de sorológicas podem retornar falsos positivos, existe a possibilidade de reduzí-los com o uso de sorologia para o antígenos H ou provas de virulência em laboratórios de referência;
- E. coli Enterohemorrágicas (EHEC) também são conhecidas como E. coli Produtora de Toxina Shiga (STEC) e causam a evacuação de fezes com sangue em pessoas de todas as idades. Este grupo de bactéria produz a toxina Shiga (ou verotoxina), que causa danos tanto ao epitélio intestinal quanto ao glomélulo renal, que é consequência do desenvolvimento do quadro de Síndrome Hemolítica Urêmica (S.H.U). No entanto, crianças, idosos e pessoas imunocomprometidas são os grupos que frequentemente são infectados por este sorotipo, onde no grupo dos idosos a taxa de mortalidade é maior que 50%. Outros sintomas são dor severa no abdomen (contrações), vômito e febre baixa ou ausente. A forma de contaminação em seres humanos se dá por ingestão de alimentos, água contaminada. Devido a dose infectiva deste sorotipo ser baixo, também pode ser transmitido por contato pessoa a pessoa. Seu mecanismo de patogenicidade é desencadeado após a aderência do sorotipo ao epitélio do intestino grosso, causando uma inflamação que evolui para colite ulcerativa que é consequência da ação da toxina Shiga;
- E. coli Enterotoxigênica (ETEC) são produtoras de enterotoxinas LS e ST, apresentando como característica mais importante desencadear a “diarréia do viajante”. Este nome se deu devido a este tipo de diarréia ser frequentemente relatada em turistas originários de países desenvolvidos que estão de visita a países em desenvolvimento. Raramente relacionada a surtos, também pode acometer crianças. O mecanismo de patogenicidade deste sorotipo é semelhante à bactéria da colera (Vibrio cholerae), que se caracteriza por causar desiquilíbrio hidrosalino no epitélio intestinal levando a diarreia aquosa. Outros sintomas são dores abdominais, febre baixa, náusea e debilidade. ETEC não são distinguidas de outras E. coli quando usado métodos bioquímicos, sendo que sua caracterização somente é realizada por laboratórios de referência, o que dificulta o diagnóstico;
- E. coli Enteroinvasora (EIEC) apresenta mecanismo de patogenicidade semelhante ao da Shigella. Podendo ser identificadas em surtos, a transmissão se dá por contato direto, bem como por ingestão de alimentos e água contaminados. O mecanismo de virulência deste sorotipo é por invasão, onde uma vez alcançado os enterócitos intestinais, ela engana o mecanismo de fagocitose do lisossomo do hospedeiro e pode ficar invadindo outros enterócitos. Esta ação causa danos ao epitélio, desencadenado disenteria aguosa com presença de muco e sangue nas fezes. Outros sintomas são febre, dor abnominal, vômito, calafrios e fraqueza generalizada, onde tais sintomas podem ser sentidos entre 12 a 72 horas após a ingestão de alimentos contaminados. O desenvolvimento da S.H.U é uma complicação que pode ocorrer em crianças. Isolada com menos frequência do que outros subtipos de E. coli, no mercado existe a disposição soros de identificação polivalentes e monovalentes para alguns indivíduos deste subtipo;
- E. coli Enteroagregativa (EAEC ou EaggEC) formam biofilmes, que nada mais é do que um agregado de bactérias envoltas por estrutura polissacarídica (típico de cáries). O mecanismo de patogenicidade se dá após adesão ao epitélio intestinal, causando um desiquilíbrio hidrosalino que resulta diarréia aquosa persistente que tem duração maior do que 7 dias. Esta última característica é a que a diferencia das demais E. coli.
Principais sorotipos de E. coli e saúde humana
Dentre os sorotipos mais conhecidos e estudados, destaca-se a E. coli O157:H7 que também pode ser conhecida por E. coli Enteroemorrágica (EHEC). Este sorotipo é uma variedade rara que é o agente causador da colite hemorrágica em humanos.
A colite pode ser causada por grupos de E. coli O157 e não O-157. Embora o registro de infecções por E. coli O157:H7 seja pouco frequente, isto provavelmente não reflete a realidade. Segundo o Centro de Vigilância Epidemiológica de São Paulo, até 2011 suspeitava-se que mais de 300 mil infecções anuais são causadas por essa bactéria somente nos Estados Unidos da América.
Segundo a mesma fonte, somente no Noroeste do Pacífico este sorotipo foi a segunda maior causa de diarréia bacteriana depois da Salmonella. Isso provavelmente está relacionado ao fato de que as pessoas somente procuram ajuda médica quando apresentam sintomas que se enquadram em casos severos da infecção. E. coli O157:H7 é produtor de toxina Shiga (Stx) que causa lesão severa às células epiteliais da perede do intestino, hemorragia intestinal severa, S.H.U. com falência renal e perda de células vermelhas do sangue (eritrócitos). Além das formas de contaminação já discutidas anteriormente, outras fontes de contágio se dá por ingestão de carne mal passada ou leite (e seus derivados) não pasteurizado.
Estudos demonstram que essa bactéria morre a uma temperatura de 70ºC, demonstrando a importância das boas práticas de higienização em indústrias de alimentos e consumo de alimentos bem cozidos. Em frigoríficos, a contaminação cruzada da carcaça pode ocorrer por uso de equipamentos contaminados e/ou mãos mal higienizadas dos colaboradores, além de ocorrer por meio de fezes do animal no momento do abate ou oriundas do intestino em etapas de processamento da carne.
Outro fato interessante sobre este sorotipo é que ele pode sobreviver em concentrações de ácidos que seriam letais para outras bactérias. Baseado em concentrações infectivas de Shigella spp., estima-se que E. coli O157:H7 possa realizar infecção após ingestão de apenas 10 células. Após alcançar o intestino grosso, esta bactéria produz elevada concentração de toxina, causando lesão a mucosa intestinal. Essa lesão é caracterizada pela degeneração das microvilosidades intestinais e a montagem de estruturas semelhantes a pedestais que estão localizadas próximas de onde as bactérias estão aderidas.
Como consequência, o hospedeiro irá apresentar sintomas como dores abdominais, febre, diarréia com sangue, perda de função renal, etc. Por este motivo, se faz necessário ter a disposição um método ráipido e eficaz de identificação da presença deste sorotipo, o que pode salvar vidas, além de evitar a comercialização de alimentos contaminados antes de chegar ao consumidor.
E. coli e sequenciamento de genoma
A análise de dados de sequenciamento de genomas bacterianos permite identificar de forma rápida padrões (genes) que permitem identificar um agente patogênico. Devido a redução dos custos de sequenciamento, ficou muito barato fazer o sequenciamento de genomas completos de isolados microbianos obtidos em cultura pura.
Com o avanço tecnologico atual é possível produzir micro processadores mais potentes, bem como aumentar a capacidade de armazenamento de dados dos computadores. Por este motivo, verificamos que nos últimos anos verifica-se o aumento na quantidade de depósitos de genomas em bases públicas de sequências de DNA e Proteínas (GenBank, ENA, etc).
Isso permite que pesquisadores do mundo todo possam explorar características de interesse, tais como bactérias relacionadas a surtos expecíficos, como a EHEC. Tal comparação é possível devido ao emprego de ferramentas de bioinfomática, como aquelas que permitem aferir similaridade entre sequências de DNA/Proteínas após realização de etapas de alinhamento global (clustalW) ou local (blast).
Estas abordagens podem ser utilizadas na identificação de forma rápida e barata de grupos de genes que permitam identificar sorotipos de E. coli, tais como a presença de genes que codificam para Stxs, adesinas, genes flagelares H, antígeno O, entre outros.
Havendo necessidade, a partir destas técnicas, pode-se aprofundar o grau de precisão analítica, como por exemplo utilizar ferramentas in silico mais sofisticadas de identificação de homologia entre sequências de DNA e/ou proteínas, tais como perfils HMMs, filogenia, modelagem de proteínas, etc.
E. coli e patogenicidade
Estudos filogenéticos sugerem que após milhões de anos de pressão seletiva no intestino de mamíferos, o gene da toxina Shiga foi incorporado ao cromossomo de EHEC após evento de inserção de um segmento de DNA viral. O segmento de DNA conhecido como Locus of Enterocyte Effacement (LEE) é uma ilha de patogenicidade que contém os genes causadores da lesão intestinal. As toxinas produzidas por EHEC se semelham a toxina Shiga, que é produzida por Shigella dysenteriae que foi isolada e estudada por Kiyoshi Shiga.
Quando identificadas pela primeira vez, as toxinas de EHEC foram referênciadas como SLT-I e SLT-II, sendo que em seguida foi aplicada uma nova terminologia, onde SLT-I é Stx1 e SLT-II é Stx2. Os genes de Stx1 e Stx2 são codificados por bacteriófagos temperados presentes em algumas linhagens de EHEC. Stxs são produzidas por pelo menos 30 sorotipos de E. coli, onde tais proteínas atuam na liberação de um resíduo de Adenina no RNA ribosomal (rRNA) 28S dos eucariotos causando a inibição da síntese proteica.
Além das toxinas, na ilha de patogenicidade de EHEC também pode ser encontrado genes que codificam uma adesina não fimbrial (possibilitam a aderência ao epitélio), a intimina (eae), além de outros genes que desempenham função chave na colinização deste sorotipo em mamíferos. Em humanos, sorotipos positivos para o gene eae estão relacionados a casos severos de diarréia.