Primeiramente…O que são bacteriófagos?

O termo bacteriófagos ou simplesmente fagos, se refere a determinados tipos de vírus, capazes de invadir células bacterianas, paralisar ou desviar seu metabolismo e ainda, no caso de fagos líticos, provocar a lise (ou ruptura) da estrutura celular da bactéria, resultando na sua “morte” ou inativação. Esse é, basicamente, o princípio da atividade antimicrobiana dos fagos. Pode soar estranho, mas fagos estão naturalmente presentes em nosso ecossistema. É possível recuperá-los de ambientes, água, alimentos, efluentes, trato gastrointestinal de humanos e outros animais, etc. Portanto, são considerados agentes antimicrobianos de ocorrência natural.

 

O que já sabemos sobre fagos e sua ação frente a bactérias indesejadas?

O potencial dos bacteriófagos para controle de patógenos e deteriorantes de origem alimentar tem sido comprovado em pesquisas científicas. Diversos estudos já identificaram fagos capazes de reduzir expressivamente, em produtos alimentícios e no ambiente de produção, populações de bactérias patogênicas de grande relevância, como Salmonella Typhimurium, Campylobacter jejuni, Staphylococcus aureus, Escherichia coli, Vibrio parahaemolyticus, Pseudomonas aeruginosas e Listeria monocytogenes

Nessas pesquisas, de maneira simplificada e, em linhas gerais, uma amostra é contaminada propositalmente com a bactéria patogênica de interesse e, em seguida, inoculada com o fago específico. Posteriormente, a enumeração da bactéria alvo possibilita que a efetividade do fago em reduzir a população bacteriana seja testada. Nos estudos que fazem uso de técnicas mais modernas, o sequenciamento genético é utilizado como ferramenta para detecção da bactéria alvo e, consequentemente, para avaliação de desempenho do fago como agente antimicrobiano. 

 

De que forma a indústria pode aplicar bacteriófagos no controle de bactérias patogênicas?

As possibilidades de uso de fagos na área de alimentos são muitas. Eles podem ser carreados por embalagens e liberados gradativamente na superfície do alimento ou adicionados diretamente ao produto – antes ou após o processamento. Os vírus podem ser disponibilizados em soluções, soluções para spray, livres, imobilizados em materiais porosos ou encapsulados, sozinhos ou combinados (coquetéis). Além dos fagos propriamente ditos, algumas de suas enzimas (endolisinas diversas ou peptidoglican-hidrolases, como a LysH5, a DW2 ou a Ctp1L) podem ser aplicadas isoladamente no controle bacteriano. 

Com tantas variações, é possível tratar uma extensa lista de alimentos pela aplicação de fagos ou suas enzimas. Leite UHT, queijos, tofu, alface e outros vegetais, salsichas, carne bovina, de aves e derivados cárneos, pescado e frutos do mar, grãos e cereais e alimentos prontos para o consumo são alguns exemplos. Existe ainda a possibilidade muito interessante de os fagos serem aspergidos em ambientes e superfícies da indústria, atuando como agente de desinfecção, inclusive contra biofilmes bacterianos, já que alguns deles secretam enzimas capazes de degradar o material polissacarídeo que se forma ao redor das células.  Além disso, algumas enzimas líticas do fago são capazes de destruir as bactérias dentro de um biofilme.

 

Certo, podemos utilizar vírus para controlar bactérias indesejadas. Mas…isso é seguro?

Se, por um lado, a aplicação de bacteriófagos é uma ferramenta biotecnológica com um grande potencial a ser explorado, seu uso levanta preocupações do público consumidor e da indústria de alimentos. 

Do ponto de vista tecnológico, ter um fago que invadisse células bacterianas benéficas na planta de uma indústria, poderia ser motivo de preocupação. De fato, alguns fagos podem invadir gêneros de bactérias importantes para o processamento de alimentos e causar um grande problema. Para a indústria de derivados lácteos e cárneos fermentados, por exemplo, ter um exército de fagos a eliminar Lactobacillus, Streptococcus e outros gêneros responsáveis pela fermentação de iogurtes, queijos e salames representaria uma ameaça à produção.

Então…como a indústria se certificaria de que esses fagos não causariam danos às suas culturas fermentadoras? Essa questão é contornada pela utilização de fagos específicos, capazes de invadir somente as células da bactéria alvo, no caso, uma determinada espécie patogênica ou deteriorante. Assim, as culturas fermentadoras estariam a salvo. Isso ocorre porque o mecanismo de invasão dos fagos à uma célula bacteriana depende de um sistema que funciona de maneira similar ao sistema “chave-fechadura”. Só invade uma determinada célula, o vírus que tem mecanismos de adesão e invasão adequados àquela bactéria, de forma que um fago não consegue invadir todos os tipos de bactérias. Em geral, os fagos de aplicação em alimentos são altamente específicos. Selecionando o fago correto, o ataque só ocorre às bactérias patogênicas e deteriorantes de interesse. 

No entanto, esta não é a questão mais polêmica em relação ao uso de bacteriófagos. O ponto mais importante sobre a inclusão de vírus em produtos destinados ao consumo humano, em termos de segurança e confiabilidade do consumidor, é justamente o fato de que eles poderiam ser, em algumas das formas de aplicação, ingeridos juntamente com o alimento. Do mesmo modo que a especificidade dos bacteriófagos garante que eles possam atacar somente bactérias específicas, a infecção de células humanas é improvável, já que os bacteriófagos não podem invadi-las. Até o momento, não foram observados efeitos adversos significativos após a administração oral de bacteriófagos. 

De qualquer maneira, é necessário estudar cuidadosamente qualquer bacteriófago a ser aplicado em alimentos. A biologia molecular é uma ferramenta de monitoramento que faz parte das medidas adotadas para eliminar riscos e manter os fagos com atividade antimicrobiana satisfatória. Para isto, o sequenciamento completo do genoma de bactérias e fagos é um excelente aliado na seleção e aplicação de bacteriófagos para biocontrole de bactérias patogênicas e deteriorantes. Em conclusão, a utilização de bacteriófagos tem se mostrado segura e representa uma alternativa promissora para as abordagens tradicionais de segurança microbiológica de alimentos.

 

Referências

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Sobre a autora

Leidiane A. Acordi Menezes é doutora em Ciência dos Alimentos pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Foi fiscal da Vigilância Sanitária e professora substituta no Departamento de Ciência e Tecnologia de Alimentos da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Atualmente é pesquisadora no setor de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação (PDI) da Neoprospecta, concentrando suas atividades na detecção de células viáveis e inviáveis de microrganismos patogênicos por Next Generation Sequencing (NGS).