Higienização e Sanitização: padrões e o rigor científico na indústria de alimentos

Desde 2017, a gestão da segurança de alimentos deixou de ser apenas uma lista de procedimentos a serem seguidos e se transformou em uma ciência de dados e evidências. Para nós, profissionais da área, este foi um salto quântico: passamos da documentação à provação científica da eficácia. Este adendo técnico visa iluminar as inovações e as mudanças regulatórias essenciais que moldaram a higiene e a sanitização industrial nos últimos anos, tornando-as mais rigorosas, digitais e, acima de tudo, cientificamente defensáveis.

Validação científica: o novo pilar da confiança global

A grande mudança no paradigma de segurança reside em uma simples pergunta: “Você pode provar que seu controle funciona?”. A resposta não pode mais ser baseada em “achismos” ou experiências passadas, mas sim em dados sólidos, alinhados a padrões internacionais.

Convergência de padrões: Codex e o Alinhamento Global

A segurança alimentar não é mais uma questão regional, mas global. A intensificação da colaboração entre o Codex Alimentarius (o “Código Alimentar”, estabelecido pela FAO/WHO) e a Global Food Safety Initiative (GFSI) 1 a partir de 2017 marcou o alinhamento definitivo da expectativa regulatória (Codex) com a expectativa comercial (GFSI). Esta convergência 2 exige que os sistemas de gestão de segurança alimentar sejam robustos e transparentes, forçando a indústria global a adotar uma abordagem única e inquestionável, cientificamente embasada, em qualquer lugar do mundo.

A Tríade V/M/V: provar, acompanhar e confirmar

Para nós, cientistas, o coração de um sistema eficaz reside na tríade Validação, Monitoramento e Verificação (V/M/V).3

  • A validação é o nosso estudo de eficácia: o processo de obter a prova científica de que o parâmetro de sanitização escolhido (tempo, concentração, temperatura) é capaz de controlar o perigo microbiano até o nível desejado. É, inegavelmente, o pré-requisito de design mais importante.3
  • O monitoramento é o acompanhamento contínuo em tempo real, garantindo que a medida está sendo aplicada conforme a Validação.3
  • A verificação é a nossa auditoria, com métodos adicionais (como a swabagem de superfície), para confirmar que o sistema funcionou conforme o pretendido.3

Uma falha na Verificação não significa apenas que a superfície está suja; ela pode indicar que a Validação original falhou ou que os parâmetros de Monitoramento não foram rigorosamente cumpridos. A validação, portanto, é a base sobre a qual construímos toda a nossa confiança no processo.

Validação, Monitoramento e Verificação (V/M/V) de Medidas de Controle (Baseado no Codex)


Conceito

Propósito Central

Momento da Aplicação

Exemplo em Sanitização

Validação

Provar a capacidade científica de controlar o perigo (a eficácia).

Ao projetar o processo/sistema ou antes de mudanças.

Estudos laboratoriais/piloto provando que o saneante A, na concentração X, reduz 5-log de Salmonella na superfície S.

Monitoramento

Garantir que a medida está sendo aplicada conforme o validado.

Durante a execução da medida (em tempo real).

Medição contínua da concentração de cloro residual no sistema de desinfecção.
Verificação
Confirmar que o sistema funciona ou funcionou conforme o planejado.

Durante e após a operação.

Swabagem de superfícies para contagem total de microrganismos ou análise de registros de monitoramento.

As novas redes de segurança regulatórias no brasil

O Brasil, através do MAPA e da ANVISA, acompanhou o rigor global, ajustando as regras tanto para a matéria-prima quanto para os insumos de higienização.

 MAPA: A vigilância na origem

A Instrução Normativa MAPA Nº 77/2018 4 estabeleceu novos e mais rigorosos critérios para a qualidade higiênico-sanitária do leite e seus derivados. Essa legislação tem um efeito cascata positivo: ao reduzir a carga microbiana inicial da matéria-prima, o desafio imposto ao Programa Operacional de Higiene (POH) da indústria é mitigado. No entanto, ela também exige que a indústria de processamento estenda sua vigilância aos programas de higiene e sanitização nos produtores rurais, transformando a limpeza da fazenda em um ponto crítico de controle indireto para a fábrica.

ANVISA: Gestão do Risco Químico e Operacional

A legislação sobre saneantes, os insumos que utilizamos para sanitizar, foi modernizada para focar no gerenciamento de risco. A Instrução Normativa ANVISA Nº 394/2025 5 e a RDC 989/2025 definem novos requisitos e a classificação de risco de produtos saneantes.

A avaliação de risco agora considera a toxicidade das substâncias, a população exposta e a frequência de exposição.5 Isso significa que a escolha do saneante deve ser justificada não apenas pela eliminação microbiana, mas também pela minimização do risco de resíduos químicos no alimento e de exposição ocupacional. Os Procedimentos Operacionais Padrão (POP) de manuseio e enxágue se tornaram mais detalhados e cruciais do que nunca.

Além disso, as diretrizes para manipuladores (como a RDC 216/2004 6) continuam a reforçar que a capacitação e a saúde do colaborador são fatores críticos. O controle sanitário das superfícies perde sua eficácia se o manipulador continuar sendo um vetor de contaminação, tornando a gestão de pessoas um Programa de Pré-Requisito perene.

Resumo das Principais Atualizações Regulatórias Brasileiras (Pós-2017)


Agência / Regulamento

Ano (Referência)

Foco e Objetivo

Implicação Direta na Higienização

ANVISA IN 394/2025 e RDC 989/2025

2025

Regulamentação de saneantes e classificação de risco.5

Escolha baseada em avaliação de risco toxicológico e de uso; documentação rigorosa de manuseio.

MAPA IN 77

2018

Boas Práticas na produção primária e qualidade do leite.4

Redução da carga microbiana inicial da matéria-prima, exigindo maior controle da higiene na fazenda.

ANVISA RDC 216

2004 (Continuidade)

Responsabilidade, capacitação e saúde do manipulador.6

Requisito obrigatório de programas de treinamento contínuo para mitigar o risco de contaminação humana.

O Sequenciamento Genômico (WGS): A Lupa Molecular no Rastreamento

O Sequenciamento Genômico Completo (Whole Genome Sequencing – WGS) é o padrão ouro na epidemiologia molecular.7 Para nós, que investigamos surtos, o WGS é o que transformou a vigilância de detetives para cientistas forenses.

WGS: Identificando Nichos de Permanência e AMR

O poder do WGS reside na sua capacidade de determinar a linhagem exata de um patógeno, como Listeria monocytogenes ou Salmonella.7 Se encontrarmos uma cepa de Salmonella 8 no produto final, o WGS pode, por meio da análise genética de alta resolução (SNP), provar se essa cepa é geneticamente idêntica àquela isolada de um dreno ou do piso da fábrica. Esta é a prova irrefutável de um nicho de permanência — um biofilme ou uma falha crônica na rotina de higienização.

Além disso, o WGS pode prever características de virulência ou, crucialmente, Resistência Antimicrobiana (AMR).7 Se o sequenciamento identificar genes de resistência 8, isso implica diretamente na saúde pública e exige que a indústria reavalie seus saneantes para garantir que a pressão seletiva não esteja gerando linhagens mais perigosas no ambiente industrial.

O Brasil na Rede Global de Vigilância

O Brasil está construindo ativamente sua capacidade para integrar o WGS à vigilância sanitária. A colaboração entre o Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde (INCQS), o Instituto Oswaldo Cruz (IOC) da Fiocruz e agências internacionais 9 visa a participação na rede de laboratórios que utiliza o programa “Genome Tracker” para monitoramento global de surtos alimentares.10 Essa infraestrutura coloca o país na vanguarda da epidemiologia molecular. A velocidade de rastreamento de surtos aumentará drasticamente, tornando a prevenção e a higiene ambiental diária ainda mais críticas para evitar recalls imediatos e interrupções operacionais.

Higiene 4.0: Quando o Dado é o Ponto de Controle Crítico

A Indústria 4.0 nos deu as ferramentas para transformar o monitoramento de atividade pontual em controle preditivo contínuo.

IoT e a Preditividade Sanitária

As tecnologias de Internet of Things (IoT) permitem que sensores capturem, armazenem e processem informações críticas de qualidade e processamento em tempo real 13, como temperatura e umidade. Esta capacidade de monitoramento contínuo transforma a gestão de higiene de reativa (correção após um swab positivo) em preditiva. Se um sensor IoT, aplicado a um equipamento, detecta um desvio nos parâmetros críticos de controle de sanitização (por exemplo, falha de aquecimento), o sistema pode gerar alertas imediatos e aplicar correções.13 O resultado é uma “resposta rápida a riscos sanitários” 13, elevando o Programa de Pré-Requisito a um Programa de Pré-Requisito Operacional (PPHO) automatizado.

 Blockchain e a Imutabilidade do Registro

Um dos desafios da Boas Práticas de Fabricação (BPF) sempre foi a integridade dos registros de limpeza. O Blockchain (BCT), quando integrado com IoT, revoluciona a confiabilidade dos dados de higiene. O BCT garante o armazenamento permanente e imutável de dados 13, protegendo as informações capturadas pela IoT (tempo, temperatura e concentração de saneantes) contra qualquer adulteração. Para a Verificação de nossos sistemas (Seção 2.2), esta imutabilidade é inquestionável, aumentando drasticamente a confiança regulatória e do consumidor nos sistemas de gestão da qualidade.

Conclusões e Recomendações Estratégicas

O que aprendemos no período pós-2017 é que a segurança de alimentos moderna é orientada por dados e evidências científicas de alta resolução.

Nossas recomendações estratégicas para a indústria de alimentos hoje são claras:

  1. Priorizar a Validação: Todo PPHO deve ser cientificamente validado conforme as diretrizes do Codex.3 Isso é vital após qualquer mudança no saneante 5 ou na qualidade da matéria-prima.4
  2. Investir em Microbiologia de Precisão: As empresas devem se preparar para a era WGS, pois a identificação de cepas persistentes e de genes de Resistência Antimicrobiana 7 será a chave para resolver falhas crônicas de sanitização em nichos ambientais.
  3. Digitalizar a Gestão de Higiene: A adoção de sensores IoT para o monitoramento em tempo real e a integração com Blockchain 13 são passos inevitáveis para transformar a BPF em um sistema de controle preditivo, ágil e à prova de auditoria.
  4. Avaliar Novas Tecnologias: A inclusão de sanitizantes avançados, como os enzimáticos (para biofilmes) ou o Ozônio (para sustentabilidade) 11, exige rigor científico na validação interna e no desenvolvimento de protocolos de segurança.

O sucesso na segurança de alimentos modernos é determinado pela nossa capacidade de integrar ciência, tecnologia e gestão de risco. A higiene não é um custo, mas uma estratégia de precisão.

Referência

  1. AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA … – Editora Roncarati, acessado em outubro 28, 2025, https://www.editoraroncarati.com.br/v2/Diario-Oficial/Diario-Oficial/AGENCIA-NACIONAL-DE-VIGILANCIA-SANITARIA-ANVISA-DOU-DE-20-08-2025.html
  2. RDC N° 216_ ANVISA – Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Secretaria de Estado da Saúde de Alagoas, acessado em outubro 28, 2025, https://www.saude.al.gov.br/wp-content/uploads/2020/06/RDC-N%C2%B0-216-ANVISA-Ag%C3%AAncia-Nacional-de-Vigil%C3%A2ncia-Sanit%C3%A1ria.pdf
  3. Legislação: Instrução Normativa MAPA – 77, de 26/11/2018 – Defesa Agropecuária, acessado em outubro 28, 2025, https://www.defesa.agricultura.sp.gov.br/legislacoes/instrucao-normativa-mapa-77-de-26-11-2018,1214.html
  4. Comparison of GFSI Schemes (and Codex) – IFSQN, acessado em outubro 28, 2025, https://www.ifsqn.com/forum/index.php/topic/14007-comparison-of-gfsi-schemes-and-codex/
  5. Codex Alimentarius – MyGFSI, acessado em outubro 28, 2025, https://mygfsi.com/wp-content/uploads/2020/05/GFSI-CODEX-Infographic.pdf
  6. PROPOSED DRAFT GUIDELINES FOR THE VALIDATION OF …, acessado em outubro 28, 2025, https://www.fao.org/input/download/standards/11022/CXG_069e.pdf
  7. Wholegenome sequencing as the gold standard approach for control of Listeria monocytogenes in the food chain – ResearchGate, acessado em outubro 28, 2025, https://www.researchgate.net/publication/366364204_Wholegenome_sequencing_as_the_gold_standard_approach_for_control_of_Listeria_monocytogenes_in_the_food_chain
  8. Salmonella isolated from street foods and environment of an urban park: A whole genome sequencing approach | PLOS One – Research journals, acessado em outubro 28, 2025, https://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0320735
  9. A utilização do ozônio como sanitizante na indústria de alimentos: uma revisão narrativa, acessado em outubro 28, 2025, https://www.researchgate.net/publication/376525853_A_utilizacao_do_ozonio_como_sanitizante_na_industria_de_alimentos_uma_revisao_narrativa
  10. tecnologia de ultravioleta para preservação de alimentos, acessado em outubro 28, 2025, https://revistas.ufpr.br/alimentos/article/download/14953/10042
  11. INCQS e IOC estreitam relacionamento com a FDA na área de …, acessado em outubro 28, 2025, https://www.incqs.fiocruz.br/index.php?option=com_content&view=article&id=2427:incqs-e-ioc-estreitam-relacionamento-com-a-fda-na-area-de-seguranca-alimentar&catid=42&Itemid=132
  12. Detergentes enzimáticos: o que são, como funcionam e os seus benefícios – OXA, acessado em outubro 28, 2025, https://oxabiotech.com/pt/detergentes-enzimaticos-o-que-sao-como-funcionam-e-os-seus-beneficios/
  13. Detergentes enzimáticos – Christeyns, acessado em outubro 28, 2025, https://www.christeyns.com/pt-pt/nueva-gama-enzimaticos/